da América, por Cristóvão Colombo
DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA POR CRISTÓVÃO COLOMBO
Comemorar os descobrimentos nem sempre é fácil para as populações latino-americanas. Este gesto carrega muita ambigüidade, pois equivale a comemorar a destruição de parte dos povos e culturas indígenas. Contudo, não devemos esquecer que muitos países da América mantém, ainda, sua ancestralidade cultural e étnica, constituindo a maioria das populações de muitos países latino-americanos.
Todos nós, descendentes de astecas, maias, incas, tupi-guaranis, portugueses e espanhóis, estamos de acordo quanto à violência utilizada pelos descobridores e colonizadores contra os indígenas para integrar este "novo" continente na cultura européia.
Mas, ao mesmo tempo que nos afastamos da idéia de destruição, desejamos ancestralmente falar e relembrar de nossa maternidade indígena. De início, guardamos uma sensação profunda, e aparentemente inexplicável, de que as estruturas familiares indígenas, na América, envolviam maior proximidade e cuidados entre adultos e crianças. Uma percepção que nos levou, e nos leva, a conceber o mundo arcaico, atrasado, com um certo sabor nostálgico, fazendo-se acompanhar, por uma recusa, porventura inconsciente, das sociedades modernas.
Assim é que guardamos, também, um certo gosto em preservar antigos hábitos de vida, incompatíveis com uma sociedade que deveria estar aparentemente ansiosa por romper suas tradições coloniais. As independências não significaram transformações na estrutura das sociedades latino-americanas. Soluções ancestrais, patriarcais, parecem nos vincular, indefinidamente, a um mundo emperrado, às vezes em tradições indígenas, às vezes em tradições cristãs, das quais não queremos nos afastar. Por isso, tendemos a parecer, e não, ser, modernos.
O que significa para o latino-americano, fruto de uma história tão paradoxal, o gesto da comemoração de uma data histórica em que se fundem tantas ambigüidades? O que representa, para nós, rememorar os descobrimentos ao lado dos europeus? Devemos sentar à mesma mesa para comemorar este difícil encontro intercultural ?
A data da comemoração é um símbolo pelo qual um grupo social rememora acontecimentos selecionados e conservados através de uma narrativa histórica. Toda a narrativa construída para comemorar uma vitória estará vinculada à narração de uma derrota. Ambas, vitória ou derrota, são temas que, igualmente, precisam ser refletidos. E, para tanto, o melhor caminho é revolver o baú da memória, ainda que isso importe em uma certa dose de sofrimento.
Localizado no tempo e no espaço, o acontecimento escolhido ganha sentido à medida que é inserido numa grande cadeia explicativa da nossa ancestralidade. Assim, alguns fatos considerados importantes por uma comunidade passam a fazer parte de suas tradições. À medida que a narrativa histórica se consolida, cria-se uma sensação ilusória de que uma força emana do passado, carregando um sentido para o devir histórico. Todos os acontecimentos selecionados parecem conduzir o leitor para uma rua de mão única. Mas, ao mesmo tempo, a repetição de uma história pode nos levar a um processo de desarticulação e rearticulação de alguns marcos do relato, institucionalizado pela historiografia, abrindo novos caminhos para a nossa reflexão. Neste sentido, a repetição possui também um caráter revelador, deixando margem para o surgimento de um olhar crítico. Ou seja, a comemoração permite aos eventos fixados pela memória assumirem significados liberadores.
Quando comemoramos, quando refazemos velhas narrativas, surge a possibilidade de transcendê-las. Nós estamos, ao descortinar dos anos 90, diante de centenas de alterações feitas na narrativa original elaborada na época dos descobrimentos. Nesse sentido, os festejos anunciam sempre a possibilidade de uma revelação pela qual os eventos escolhidos podem ganhar significados novos.
Inicialmente, a temática dos descobrimentos nos remetem a duas ordens de significações. A primeira responde ao imaginário europeu do século XV, para o qual a América, habitada por povos bárbaros, deveria transformar-se em um "Novo Mundo". Nela, os descobridores e colonizadores deveriam implantar todos os padrões básicos da cultura européia, soterrando a barbárie. As cidades construídas, segundo as determinações dos europeus, representariam a implantação dos padrões básicos da cultura européia. Seriam a expressão primeira de um Novo Mundo criado à imagem e semelhança do velho. Assim, a América refeita, segundo os moldes europeus, tornar-se-ia parte substancial na montagem de uma economia mundial, centralizada em Portugal e na Espanha.
A segunda permite comemorar os descobrimentos, retomando alguns fragmentos das culturas pré-colombianas. Estes fragmentos favorecem a produção de utopias centradas em nosso passado indígena. Utopias de sociedades sem classe, de comunidades, onde os latino-americanos poderiam escapar da trágica condição colonial. Comemorar, nesse sentido, significa trazer à memória as tradições indígenas ainda que de formas fragmentárias. Essas vivências (e não sobrevivências), tipicamente latino-americanas, constituíram desafios para o mundo do "sempre-igual" criado pela cultura européia.
Tanto por um caminho como por outro, ao comemorar o quinto centenário, satisfazemos de forma narcísica o nosso ideal de cultura contido nessas duas vertentes. Ou seja, várias histórias, que nos trazem alegria ou tristeza, podem ser relembradas e rememoradas numa mesma data, não precisando sequer constituírem-se como verdadeiras. Os eventos, arrolados em torno da data 1492, indicam apenas a convivência de narrativas, em parte reais e em parte imaginárias (mitos) sobre as populações nativas da América no momento da chegada dos europeus. Estas narrativas, consagradas pela crônica, mantiveram-se, por motivos diversos, na memória de europeus e americanos, através de séculos. A violência contra o indígena e, principalmente, a perda de grande parte das tradições indígenas, faz parte de um espaço difícil de ser trabalhado pela memória. A dificuldade apenas define com mais clareza o espaço que deve ser revolvido, não esquecido.
Devemos festejar porque, ao realizar festejos, ativamos as nossas lembranças para construir conexões que nos permitam pensar criticamente o passado. Repetindo por cinco séculos a história dos descobrimentos, redescobrimos experiências vividas, ancestralmente, como se através destes reencontros sucessivos pudéssemos achar a libertação.
Comemorar, festejar, fertilizar o solo com críticas, ou ainda, parodiar e carnavalizar a comemoração e seus festejos é uma forma de se refletir sobre os descobrimentos para se desvencilhar de modelos arcaicos cristalizados pela nossa civilização. Atentos à repetição podemos despertar, através de um processo de reinterpretação do passado, todo o lado demoníaco da obra colonial, emancipando a história latino-americana de sua antiga contextualização.
Esta será a forma brasileira de festejar a história, ao mesmo tempo que trágica, maravilhosa, produzida neste continente. Afinal, estamos hoje diante de culturas latino-americanas que embora se pareçam, em parte, com as culturas européias, não podem ser compreendidas apenas por meio destas.
Texto retirado do site:
http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/ab-p-l-capi1.htm