SONINHA
EU TENHO....
...defeitos difíceis de confessar, especialmente a inveja
por Soninha Francine
Tempos atrás, recebi cumprimentos por ter dito, em um programa de televisão, que tenho inveja. (É bom deixar claro: não fui cumprimentada por ter inveja, mas por ter dito). O tema da discussão era “defeitos que as pessoas não gostam de confessar” em contraponto aos populares “sou perfeccionista”, ou “acredito demais nas pessoas”. Não queria mostrar esse meu lado horrível, mas era essa a idéia.
Minha inveja já foi muito pior, mais violenta, e me fazia sofrer amargamente. Não a ponto de desejar o mal para alguém, torcer para que alguma coisa desse errado. Mas volta e meia me pegava pensando com raiva, com amargor: “Por que não eu?”; “Eu também quero!”
Na faculdade, morria de inveja de quem não precisava sair correndo depois da aula para trabalhar. Quem podia escolher o que fazer: ficar no Centro Acadêmico, passar a tarde na biblioteca, nadar, ir ao cinema. Ah, como eu queria... Como me incomodava alguém ter o que eu não podia ter.
Eu me torturava com as festas perdidas, as viagens não feitas, as turmas que não me incluíam. Parecia que o evento perdido tinha sido o mais divertido de todos os tempos mas, até sem perceber, eu tentava desvalorizar o que não estava ao meu alcance: “Ainda bem que eu não fui. Detesto gente bêbada”. Às vezes, tentava outra estratégia. Quando me consumia em um pensamento do tipo “ela vai de avião para a Europa pela terceira vez e eu, como sempre, vou pegar um ônibus para a casa da família na praia”, tentava transformá-lo em orgulho: “Imagine, ela nunca vai saber o que é viajar de condução. Não conhece esse lado da vida”.
Inveja é um sentimento ruim. Não creio que faça mal a quem é objeto dela, como reza a crença popular, aquela coisa da “secada” ou mau-olhado. Faz mal ao sujeito da inveja. Envenena, intoxica, corrói. Mas, embora ela seja tão incômoda, é dificílimo reconhecer sua presença. Outras emoções aflitivas gozam de certo prestígio: raiva, ciúme... Sentimentos que as pessoas dizem “eu tenho, sim”. Elas têm defensores, até (“o ciúme é o tempero do amor”). A inveja não, ela é condenada em adesivos: “É uma m*”. “Não me inveje, trabalhe”. Quem quer dizer que tem?
Admitir é um grande passo. Quando reconheci que o “sentimento de injustiça” que me movia era, no fundo, inveja, comecei a brincar com ela. Confessar a dor-de-cotovelo a tornava menos latejante. Até os mestres budistas admitem que sentimentos assim surgem na mente só que eles conseguem não dar bola para eles. Não usam esse combustível. Será que alguém é completamente livre de inveja?
Saber que tenho inveja não deveria servir como muleta. Bom, se aliviar o sofrimento, tudo bem, mas acho melhor mesmo tentarmos não dar corda para ela. E entender quando os outros têm inveja da gente. Ah, sim, e cultivar uns antídotos: olhar um cachorro deitado ao sol e pensar “que bom que ele tem esse momento de prazer!” (começar com bicho é mais fácil). Ver uma casa linda e imaginar : “Uau, que legal deve ser morar ali. Olha aquela mulher lendo um livro na varanda. Que bom, ela está feliz”. Não é fácil. Mas com o tempo faz efeito.
Soninha ainda olha casas lindas e pensa “queria tanto ter uma assim...”. Aí pensa que dá para ficar feliz deitada ao sol.
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