A CRISE NA BOLÍVIA
Já tivemos a oportunidade de dizer em coluna anterior que o elemento democrático se incorporou definitivamente ao Estado de Direito após o encerramento da II Grande Guerra, enquanto arma de defesa das nações e do mundo contra os regimes totalitários. Tudo começa com a instituição da ONU, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e com o surgimento de uma série de documentos internacionais voltados à proteção das pessoas contra toda forma de arbítrio e opressão. A esse movimento de produção de normas jurídicas no plano internacional, segue-se paulatinamente o reconhecimento, pelas constituições nacionais, desses mesmos princípios e normas que, então, se incorporam aos direitos internos, dando nascimento aquilo que muitos estudiosos chamam de direitos fundamentais de terceira geração, direitos de que não são titulares apenas os indivíduos ou os grupos, mas sim todo o gênero humano: os direitos difusos à paz, à democracia, à informação, ao desenvolvimento, etc. Alguns pensadores se referem a esse fenômeno como "expansão do direito" (Celso Lafer, entre nós, fala de "expansão axiológica do direito"). Concordamos plenamente com a idéia.
Mas o que toda essa teorização tem a ver com a crise que hoje toma conta da Bolívia?
Tudo, porque a crise boliviana é, antes de mais nada, uma crise constitucional e que envolve diretamente questões relacionadas aos fundamentos do Estado de Direito e ao respeito aos direitos fundamentais de terceira geração. Senão vejamos.
O amplo espectro da crise boliviana
Inicialmente, parece interessante assinalar que a crise atual tem sua origem remota na madrugada de 9 de dezembro do ano passado, quando o governo Evo Morales fez passar no Legislativo boliviano um projeto de texto constitucional sem que a maioria dos membros que compõem a oposição estivesse presente. A oposição alega que este texto aprovado às escondidas (em sessão extraordinária realizada em um quartel) não foi democraticamente discutido (por isso, "ditatorial") e que as mudanças propostas não se qualificam pelo consenso (o socialismo indigenista, a estatização da economia, a nacionalização dos recursos de gás e petróleo, a reforma agrária e a permissão para a reeleição do próprio Evo).
Mais proximamente, a crise se estabelece quando após ter sido ratificado no cargo presidencial pelo "referendo revogatório", de 10 de agosto, e sentindo-se legitimado a levar às últimas conseqüências seu projeto de "refundação da Bolívia", Evo Morales convoca por decreto, para o dia 7 de dezembro de 2008, um novo referendo nacional, agora para aprovar o polêmico projeto de Constituição. A oposição afirma que se trata de outro ato antidemocrático, porque o normal seria a convocação do referendo partir do Senado boliviano, de maioria oposicionista, que de antemão já havia afirmado que não convocaria tal manifestação popular.
Em meio a toda essa crise, os governadores de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando já haviam patrocinado "consultas populares regionais"(contra a vontade de La Paz) para aprovação da autonomia desses departamentos com o que se livrariam, pelo menos em parte, do governo "socialista indigenista" de Evo Morales. Além disso, outra fonte de enorme descontentamento foi a transferência ("confisco" para os oposicionistas) de recursos destinados a essas províncias (em razão da produção de gás e petróleo) para um programa emergencial de aposentadoria para idosos. E para colocar mais lenha na fogueira, os quatro governadores oposicionistas afirmaram que o referendo de 7 de dezembro não acontecerá em seus territórios.
Eis o quadro amplo do conflito que já deixou um rastro de quase 50 pessoas mortas.
A crise à luz dos princípios do estado de direito e dos direitos fundamentais
Não se afigura nada difícil perceber que a crise política por que passa a nação boliviana tem um forte inequívoco componente jurídico. Ao que parece, nossos irmãos andinos já não sabem muito bem como reformar a própria Constituição e nem como instituir uma Assembléia Nacional Constituinte. Esta falta de segurança, quanto aos procedimentos jurídicos para criar ou reformar a lei constitucional, torna clara a idéia de que a crise é jurídica antes de ser política. Também as freqüentes iniciativas de referendo demonstram quão frágeis são os alicerces constitucionais e democráticos da Bolívia: "referendo revogatório", "referendo nacional do texto da nova Constituição", "consultas populares pro-autonomia" nos departamentos. Tudo se apresenta como uma grande aventura e um grande "imbróglio". Em terras bolivianas, ainda não se encontra consolidado, infelizmente, o direito fundamental à democracia.
"Qual é o valor do direito ao voto, na Bolívia, se ele conduz um presidente a desrespeitar as regras do jogo democrático?"
Mas no que se traduz o direito de cada um e de todos nós a democracia?
De todos nós, dizemos, para incluir os não-bolivianos, porque a todas as pessoas do mundo interessa, por várias razões, a democracia na Bolívia. Lembremo-nos, aqui e mais uma vez, do pensamento de Norberto Bobbio segundo o qual a paz no mundo depende da paz interna de cada país, o que quer dizer que a paz mundial depende das democracias nacionais (eis o direito difuso - do gênero humano - à paz e à democracia).
Mas, voltando os nossos olhos apenas para a nação boliviana, no que se traduz o direito à democracia?
Democracia, antes de mais nada, significa estado de direito: não há democracia sem estado de direito e não existe estado de direito sem democracia! Assim é porque não é possível pensar em nenhuma coisa, nem em outra, sem se considerar a efetiva separação de poderes.
Quem deve elaborar uma nova Constituição na Bolívia: o executivo ou uma assembléia constituinte?
Ou reformá-la: o executivo ou o legislativo?
Para se reformar, não é necessário um quorum qualificado do legislativo, como ocorre no mundo inteiro?
Quem promove referendo: o administrador ou o legislador?
Administradores regionais podem realizar consultas populares "pro-autonomia"?
A destinação constitucional ou legal de dinheiro público pode ser alterada por decreto presidencial?
Pergunta conclusiva: por onde anda a separação de poderes na Bolívia?
É interessante observar que, já em 1789, os revolucionários franceses afirmavam na sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição".
Afinal, se é verdadeira a proposição francesa, onde está a Constituição boliviana?
Por onde anda o princípio fundamental do estado de direito que se expressa pela constitucionalidade?
Que valor têm os princípios da supremacia, da prevalência e da unidade constitucional na Bolívia?
E o controle de constitucionalidade, quase sempre exercido pelo Poder Judiciário?
Nenhuma nota na imprensa nesses últimos meses cita o Poder Judiciário boliviano! Daí voltamos ao ponto inicial: se não há Judiciário independente, e não há separação definida entre as funções executiva e legislativa, não há Constituição e, não havendo Constituição, não há estado de direito, nem democracia.
Por fim, vale a pena ressaltar que a ausência de efetiva separação de poderes e de respeito à Constituição comprometem irremediavelmente tudo aquilo que significa o direito fundamental de terceira geração à democracia.
Qual é o valor do direito ao voto, na Bolívia, se ele conduz um presidente a desrespeitar as regras do jogo democrático?
Que previsibilidade tem o processo democrático se já não se sabe o que pode acontecer em termos políticos e jurídicos daqui para frente?
Que direito é este se os valores democráticos que compõem o seu objeto não são passíveis de controle jurisdicional?
Se democracia é governo do povo, no caso boliviano (porque todo o poder emana do povo), como admitir a influência enorme (política e econômica) que exerce o estrangeiro Hugo Chaves sobre o presidente Evo Morales?
Muito bem fizeram os militares bolivianos ao recusarem terminantemente à ajuda do exército venezuelano para enfrentar a crise interna, tudo em nome da soberania nacional; talvez bem tenha agido identicamente o próprio Evo Morales ao recusar a mediação de brasileiros, argentinos e chilenos, já que se trata de questão interna, tudo em nome da autodeterminação dos povos, um valor e princípio estritamente democrático.
Que peso tem hoje o direito à democracia na Bolívia se ele não está sendo capaz de produzir a paz entre os bolivianos?
Não nos esqueçamos que democracia e paz constituem a única base segura do respeito e do exercício efetivo de todos os outros direitos fundamentais.
Do Site: www.vejaonline.abril.com.br/notitia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário