PERTO DO FOGO
A cozinha é o lugar mais vivo da casa.
O espaço onde acontecem não só as refeições, mas as relações de afeto
por Mariana Lacerda
Uma das lembranças da infância de Betina Hakin é que logo de manhã, ao acordar, ela já sentia pela casa o cheiro de comida sendo preparada no fogão. Conta que tomava o café da manhã reconhecendo os aromas daquilo que seria servido no jantar. Que mesmo hoje, e mais de 30 anos se passaram, ao se aproximar da porta da casa de seus pais, em São Paulo, acerta o prato que está sendo preparado tão logo sai do elevador. Ali, desde sempre, os dias da semana, assim como as horas do dia, são anunciados pela cozinha: seus barulhos, o bater de panelas e os cheiros sempre lhe disseram que chegava a hora de ir para a escola, assim como o cheiro de cebola refogada na hora do café da manhã era promessa de que o fim de semana, enfim, se aproximava.
Em toda morada, a cozinha é assim: espécie de relógio que marca os compassos do dia, um coração que, tum-tum-tum, sensibiliza os limites do lar ao anunciar as horas e, nelas, os encontros entre todos. Uma casa que tem a cozinha funcionando plenamente é mais viva. Hoje é o lugar de encontro preferido da casa “porque há algo de mágico entre cozinhar, comer, beber e conversar”, diz o arquiteto Marcelo Ferraz, de São Paulo. Mas nem sempre foi assim. Em sociedades e em momentos distintos, a cozinha teve também papéis diferentes.
Ao longo da história, a cozinha - seu tamanho e sua localização na casa - foi sendo modificada seguindo as mudanças de como nos relacionamos em família, nosso jeito de administrar o tempo e até mesmo, como não poderia deixar de ser, nossos hábitos alimentares. Em cada canto do mundo e em cada lugar do Brasil a cozinha sempre refletiu tudo isso. Portanto, puxe uma cadeira, ponha água no fogo para fazer um cafezinho e entenda por que ela determina tanto nossas relações sociais, nosso cotidiano e nossos laços de amizade e de carinho.
Chama acesa
No Brasil, as primeiras cozinhas foram as indígenas: fogareiros e, sobre eles, potes e tachos de cerâmica, no lado de fora das tabas e palhoças. Mas também, não raro, o fogareiro ficava dentro da taba para espantar os mosquitos e aquecer os moradores, sempre em volta do fogo.
Quando os portugueses chegaram por estas terras, a ajuda indígena foi de um valor inestimável. Para sua casa, o homem branco tomou emprestados do índio, além da rede e da canoa, alguns ingredientes para a culinária - o principal deles a mandioca. Os índios também forneceram à cozinha dos portugueses as primeiras cerâmicas e as formas de colocálas sobre o fogo. Até hoje, se você reparar direito pelos cantinhos do Brasil, as cozinhas ainda guardam traços indígenas, como as panelas de barro e os fogareiros a lenha.
O cardápio indígena também introduziu nas cozinhas de nossos colonizadores equipamentos como a prensa de espremer a mandioca, assim como a casa de fazer farinha, essa sempre no quintal. Os derivados de milho, como a canjica e o fubá, também exigiam a introdução de equipamentos peculiares. Assim, o índio foi dando sua contribuição à cozinha que aos poucos seria chamada de brasileira - e que seria bem diferente sem a presença do negro, que, como escravo dos portugueses, também deu sua contribuição. “Eles adotaram a cozinha com bastante carinho, pois ela era seu novo lugar de trabalho e de estar, tanto aquelas dos patrões como as próprias, de suas casas modestas”, escreveu o arquiteto e historiador Carlos Lemos em seu livro Cozinhas, etc.
Lemos refere-se à cozinha da casa-grande, aquela dos engenhos de cana-de-açúcar do Nordeste e também das fazendas de café do Sudeste do país. Mesas de jacarandá, grandes, às vezes com mais de 5 metros de comprimento, dominavam as varandas, ambiente onde se sentavam os senhores de engenho, fazendeiros, viajantes e mascates, os compadres, o capelão, o feitor. Todos à mesa enquanto as senhoras e as sinhazinhas eram isoladas do convívio social. “Era uma sociedade patriarcal”, diz Lemos, professor da Faculdade de Arquitetura, da USP. E o que restava às mulheres? Cozinhar. “Várias inventaram comidas, doces, conservas com os frutos e as raízes da terra”, disse Gilberto Freyre, que no livro Sobrados e Mocambos relacionou a formação dos traços brasileiros com nossas diversas formas de morar.
Cozinha utilitária
Até bem pouco tempo atrás e mesmo ainda hoje, o desenho de nossas cozinhas reflete nosso passado ligado à escravidão. “As plantas consideravam uma cozinha manipulada por empregados”, diz Marcelo Ferraz. Ele se refere aos projetos tradicionais de casas e apartamentos no Brasil, em que a sala aparece isolada da cozinha, que por sua vez é seguida de área de serviço e quarto de empregada. Um modelo cujas bases ainda se encontram em nossa herança escravocrata.
Na Europa, contudo, as casas e apartamentos foram planejados sem levar em consideração a presença de domésticas. A cozinha tradicionalmente constituía uma espécie de apêndice da sala de estar, pois jamais foi pensada, com exceção daquelas dos palácios da corte, para contarem com a ajuda de empregados.
Na virada do século 20, surgiu a Cozinha de Frankfurt, uma invenção cujo projeto saiu das mãos de uma mulher. A arquiteta alemã Margarete Lihotzky inovou ao propor uma cozinha pequenininha, planejada, e onde todos os utensílios estavam sempre visíveis. Sua criação ganhou o nome de “cozinha-máquina”, pois a idéia principal era a utilização racional dos espaços e dos utensílios para facilitar o trabalho feminino que, já não era sem tempo, deixava de ser apenas caseiro para ganhar o mercado de trabalho. Com as mudanças em nossos padrões de trabalho, o ato de cozinhar aliou-se à praticidade. E a cozinha, claro, refletiu essa tendência.
Cozinha de estar
Vem dos Estados Unidos, contudo, o jeito cada vez mais recorrente nas metrópoles brasileiras de projetar a cozinha: colocá-la junto à sala. Trata-se da cozinha americana. Que é também compacta, pequena, com peneiras, conchas e facas à mostra, mas com uma diferença em relação à Cozinha de Frankfurt: está ligada à sala. É uma forma de ganhar espaços e aproximar quem cozinha do convívio social. “Hoje a sala passou a ser cozinha”, diz Marcelo Ferraz.
O arquiteto lembra que, muito embora essa seja uma tendência cada vez maior nas novas residências, sobretudo em reformas, a cozinha integrada à sala é comum nas casinhas interioranas, onde o espaço sempre foi reduzido. Autor de um livro chamado Arquitetura Rural da Serra da Mantiqueira, ele cita como exemplos as cozinhas dessa região, que são pequenas e cumprem o papel de sala de estar. “São organizadíssimas”, diz Marcelo. Pois praticidade é fundamental para quem diariamente precisa se dar com a roça e com a criação dos filhos, sem jamais esquecer do feijão cozinhando no fogão a lenha.
Uma distribuição que segue, sim, a lógica do aproveitamento de espaço, mas também uma organização que termina por promover o convívio entre as pessoas. Porque, seja qual for o período da história, em lugares escondidos do Brasil como as casinhas da serra da Mantiqueira ou mesmo nos apartamentos de nossas metrópoles, é em torno da cozinha, ou em conseqüência dela, que se estabelecem muitas das nossas relações de convívio, trocas, afetos.
Parece até trivial, mas, se você parar para pensar, existe algo de muito especial em permanecer horas e horas em volta de uma mesa, compartilhado conversas e garrafas de vinho enquanto um prato sai do forno. E por isso mesmo a cozinha tornou-se o lugar preferido de uma moradia. Seja para quem cozinha, seja para quem saboreia. Uma demonstração de carinho tão especial que inspirou o cinema e a literatura, a exemplo do conto A Festa de Babette, da dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962). História que ficou mais conhecida pelo cinema (no filme de mesmo nome, dirigido por Gabriel Axel, em 1987), A Festa de Babette conta a trajetória de uma moça pobre que gasta toda a fortuna conseguida por sorte numa loteria para oferecer um jantar. Foi a melhor forma que Babette, a personagem, encontrou para agradecer ao povoado que a acolheu.
por Mariana Lacerda
Uma das lembranças da infância de Betina Hakin é que logo de manhã, ao acordar, ela já sentia pela casa o cheiro de comida sendo preparada no fogão. Conta que tomava o café da manhã reconhecendo os aromas daquilo que seria servido no jantar. Que mesmo hoje, e mais de 30 anos se passaram, ao se aproximar da porta da casa de seus pais, em São Paulo, acerta o prato que está sendo preparado tão logo sai do elevador. Ali, desde sempre, os dias da semana, assim como as horas do dia, são anunciados pela cozinha: seus barulhos, o bater de panelas e os cheiros sempre lhe disseram que chegava a hora de ir para a escola, assim como o cheiro de cebola refogada na hora do café da manhã era promessa de que o fim de semana, enfim, se aproximava.
Em toda morada, a cozinha é assim: espécie de relógio que marca os compassos do dia, um coração que, tum-tum-tum, sensibiliza os limites do lar ao anunciar as horas e, nelas, os encontros entre todos. Uma casa que tem a cozinha funcionando plenamente é mais viva. Hoje é o lugar de encontro preferido da casa “porque há algo de mágico entre cozinhar, comer, beber e conversar”, diz o arquiteto Marcelo Ferraz, de São Paulo. Mas nem sempre foi assim. Em sociedades e em momentos distintos, a cozinha teve também papéis diferentes.
Ao longo da história, a cozinha - seu tamanho e sua localização na casa - foi sendo modificada seguindo as mudanças de como nos relacionamos em família, nosso jeito de administrar o tempo e até mesmo, como não poderia deixar de ser, nossos hábitos alimentares. Em cada canto do mundo e em cada lugar do Brasil a cozinha sempre refletiu tudo isso. Portanto, puxe uma cadeira, ponha água no fogo para fazer um cafezinho e entenda por que ela determina tanto nossas relações sociais, nosso cotidiano e nossos laços de amizade e de carinho.
Chama acesa
No Brasil, as primeiras cozinhas foram as indígenas: fogareiros e, sobre eles, potes e tachos de cerâmica, no lado de fora das tabas e palhoças. Mas também, não raro, o fogareiro ficava dentro da taba para espantar os mosquitos e aquecer os moradores, sempre em volta do fogo.
Quando os portugueses chegaram por estas terras, a ajuda indígena foi de um valor inestimável. Para sua casa, o homem branco tomou emprestados do índio, além da rede e da canoa, alguns ingredientes para a culinária - o principal deles a mandioca. Os índios também forneceram à cozinha dos portugueses as primeiras cerâmicas e as formas de colocálas sobre o fogo. Até hoje, se você reparar direito pelos cantinhos do Brasil, as cozinhas ainda guardam traços indígenas, como as panelas de barro e os fogareiros a lenha.
O cardápio indígena também introduziu nas cozinhas de nossos colonizadores equipamentos como a prensa de espremer a mandioca, assim como a casa de fazer farinha, essa sempre no quintal. Os derivados de milho, como a canjica e o fubá, também exigiam a introdução de equipamentos peculiares. Assim, o índio foi dando sua contribuição à cozinha que aos poucos seria chamada de brasileira - e que seria bem diferente sem a presença do negro, que, como escravo dos portugueses, também deu sua contribuição. “Eles adotaram a cozinha com bastante carinho, pois ela era seu novo lugar de trabalho e de estar, tanto aquelas dos patrões como as próprias, de suas casas modestas”, escreveu o arquiteto e historiador Carlos Lemos em seu livro Cozinhas, etc.
Lemos refere-se à cozinha da casa-grande, aquela dos engenhos de cana-de-açúcar do Nordeste e também das fazendas de café do Sudeste do país. Mesas de jacarandá, grandes, às vezes com mais de 5 metros de comprimento, dominavam as varandas, ambiente onde se sentavam os senhores de engenho, fazendeiros, viajantes e mascates, os compadres, o capelão, o feitor. Todos à mesa enquanto as senhoras e as sinhazinhas eram isoladas do convívio social. “Era uma sociedade patriarcal”, diz Lemos, professor da Faculdade de Arquitetura, da USP. E o que restava às mulheres? Cozinhar. “Várias inventaram comidas, doces, conservas com os frutos e as raízes da terra”, disse Gilberto Freyre, que no livro Sobrados e Mocambos relacionou a formação dos traços brasileiros com nossas diversas formas de morar.
Cozinha utilitária
Até bem pouco tempo atrás e mesmo ainda hoje, o desenho de nossas cozinhas reflete nosso passado ligado à escravidão. “As plantas consideravam uma cozinha manipulada por empregados”, diz Marcelo Ferraz. Ele se refere aos projetos tradicionais de casas e apartamentos no Brasil, em que a sala aparece isolada da cozinha, que por sua vez é seguida de área de serviço e quarto de empregada. Um modelo cujas bases ainda se encontram em nossa herança escravocrata.
Na Europa, contudo, as casas e apartamentos foram planejados sem levar em consideração a presença de domésticas. A cozinha tradicionalmente constituía uma espécie de apêndice da sala de estar, pois jamais foi pensada, com exceção daquelas dos palácios da corte, para contarem com a ajuda de empregados.
Na virada do século 20, surgiu a Cozinha de Frankfurt, uma invenção cujo projeto saiu das mãos de uma mulher. A arquiteta alemã Margarete Lihotzky inovou ao propor uma cozinha pequenininha, planejada, e onde todos os utensílios estavam sempre visíveis. Sua criação ganhou o nome de “cozinha-máquina”, pois a idéia principal era a utilização racional dos espaços e dos utensílios para facilitar o trabalho feminino que, já não era sem tempo, deixava de ser apenas caseiro para ganhar o mercado de trabalho. Com as mudanças em nossos padrões de trabalho, o ato de cozinhar aliou-se à praticidade. E a cozinha, claro, refletiu essa tendência.
Cozinha de estar
Vem dos Estados Unidos, contudo, o jeito cada vez mais recorrente nas metrópoles brasileiras de projetar a cozinha: colocá-la junto à sala. Trata-se da cozinha americana. Que é também compacta, pequena, com peneiras, conchas e facas à mostra, mas com uma diferença em relação à Cozinha de Frankfurt: está ligada à sala. É uma forma de ganhar espaços e aproximar quem cozinha do convívio social. “Hoje a sala passou a ser cozinha”, diz Marcelo Ferraz.
O arquiteto lembra que, muito embora essa seja uma tendência cada vez maior nas novas residências, sobretudo em reformas, a cozinha integrada à sala é comum nas casinhas interioranas, onde o espaço sempre foi reduzido. Autor de um livro chamado Arquitetura Rural da Serra da Mantiqueira, ele cita como exemplos as cozinhas dessa região, que são pequenas e cumprem o papel de sala de estar. “São organizadíssimas”, diz Marcelo. Pois praticidade é fundamental para quem diariamente precisa se dar com a roça e com a criação dos filhos, sem jamais esquecer do feijão cozinhando no fogão a lenha.
Uma distribuição que segue, sim, a lógica do aproveitamento de espaço, mas também uma organização que termina por promover o convívio entre as pessoas. Porque, seja qual for o período da história, em lugares escondidos do Brasil como as casinhas da serra da Mantiqueira ou mesmo nos apartamentos de nossas metrópoles, é em torno da cozinha, ou em conseqüência dela, que se estabelecem muitas das nossas relações de convívio, trocas, afetos.
Parece até trivial, mas, se você parar para pensar, existe algo de muito especial em permanecer horas e horas em volta de uma mesa, compartilhado conversas e garrafas de vinho enquanto um prato sai do forno. E por isso mesmo a cozinha tornou-se o lugar preferido de uma moradia. Seja para quem cozinha, seja para quem saboreia. Uma demonstração de carinho tão especial que inspirou o cinema e a literatura, a exemplo do conto A Festa de Babette, da dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962). História que ficou mais conhecida pelo cinema (no filme de mesmo nome, dirigido por Gabriel Axel, em 1987), A Festa de Babette conta a trajetória de uma moça pobre que gasta toda a fortuna conseguida por sorte numa loteria para oferecer um jantar. Foi a melhor forma que Babette, a personagem, encontrou para agradecer ao povoado que a acolheu.
Além dos dias de festa e confraternização que se encerram numa cozinha, há ainda a vida cotidiana que se costura e se fortalece em seu entorno, no ato de diariamente fazer coisas como coar um café, espremer laranjas ou mesmo descamar peixes. Como Betina, que reconhecia as horas de sua casa pelos cheiros da cozinha. São anúncios de carinho de quem elabora a comida, prepara o suco. E são os sinais de um futuro próximo que é feito de mesa farta, dias saudáveis, encontros. Que nascem e se alastram da cozinha.
Para saber mais
Livros:
• Sobrados e Mocambos, Gilberto Freyre, Global
• Cozinhas, etc., Carlos A. C. Lemos, Perspectiva
Extraído do Site: http://vidasimples.abril.com.br/subhomes/
Para saber mais
Livros:
• Sobrados e Mocambos, Gilberto Freyre, Global
• Cozinhas, etc., Carlos A. C. Lemos, Perspectiva
Extraído do Site: http://vidasimples.abril.com.br/subhomes/
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